Aqui apresento videos, experiências e instantâneos de dança com as crianças, que atuam, dirigem, concebem e operam seus trabalhos. O que pode circundar a ação de captar a imagem, a dança e suas fantasias.

A dança, esse momento fugaz, que atravessa a infância, que também se desfaz com os anos e as vivências, não é a mesma que a imagem pode conceber. Apenas quem dança pode minimamente acessar o luxo do movimento no espaço. Fiquemos a olhar pelas frestas, atiçando nossas imaginações.

Os vídeos também estão disponíveis no canal Susaloca no You Tube.


12.17.2008

No ano de 2007 tive o prazer de trabalhar com crianças entre sete e nove anos de idade, em situação de vulnerabilidade, participantes de um projeto social localizado no bairro Partenon, em Porto Alegre. Neste projeto, realizava oficinas de dança a partir de procedimentos contemporâneos, o que não costuma ser muito bem compreendido no senso comum. Ainda assim, devido à resposta que obtive, iniciei uma experiência de videodança que se desenvolve até hoje, o me rende trocas interessantes de conhecimentos e reflexões acerca deste fazer.

A videodança – prefiro, como alguns colegas já o fazem, referir-me no feminino – uma forma de arte recente com parentescos na videoarte, une procedimentos da esfera da dança e do vídeo. Acrescento por conta e preferência as tecnologias digitais e experimentais -, tudo isso, na minha pesquisa, a serviço de uma ação pedagógica. Essa ação, pautada, também, por uma questão de identificação, por olhares sensíveis na pesquisa em arte e cultura visual. Não estou inventando a roda, mas juntando informações de áreas referenciais em minha formação. Além disso, sempre é bom compartilhar ‘como’ se realiza algo.

Essa linguagem necessita de um suporte tecnológico, ela se caracteriza como um audiovisual que forma uma linguagem única, podendo ser elaborada a partir de objetivos diferenciados, que resultam em trabalhos distintos, como filmes de dança, vídeos-filmes documentários sobre dança (produções que contenham entrevistas ou outros elementos além da dança). Coreografias para câmera são trabalhos originalmente feitos para videodança e há uma vertente dessas criações que se insere nas Experiment and Digital Technologies (Tecnologias Digitais e Experimentais), que vão além da dança e podem existir apenas em vídeo ou outras tecnologias.

Videodança, é importante frisar, não se trata de um registro de dança, que pode ser obtido com a câmera fixa, em plano aberto, sem movimento. Além disso, o entendimento de que um registro possa apresentar a dança é um equívoco, como bem enfatiza Ivani Santana (2002). Para a autora, mesmo com a notação coreográfica não é possível apreender dança, que

só é dança quando se dança: cada coisa só pode existir pela sua própria natureza. Sendo assim, mesmo as modernas tecnologias, até então existentes, podem até conseguir um grau maior de similaridade entre os sistemas de dança e notação, mas cada um respira pela sua própria especificidade. Cada mídia carrega sua lógica particular de funcionamento.

A experiência da videodança, portanto, se desvincula da busca de similaridade com a dança executada. Ela busca transformar, chamar atenção para outros detalhes, muitas vezes, o que está nas entrelinhas da criação coreográfica, o que não seria possível de ser observado a olho nu. Ela parte de uma coreografia, mas se configura como outra criação coreográfica. Para isso, é fundamental ao videomaker a experiência como coreógrafo e uma alta sensibilidade para diferenciados modos de ver e detectar determinados temas e possibilidades de mapeamentos do movimento.

Muitos artistas da dança já fazem uso dos recursos oferecidos pela era da tecnocultura, inclusive artistas da dança. O bailarino e coreógrafo norte-americano Merce Cunningham (1919-2009) foi um dos pioneiros, rompendo paradigmas e conquistando para a arte coreográfica um novo status. Cunningham não via mais sentido em “contar histórias” através da dança e encarnar “personagens”. Influenciado pela filosofia zen e pelo seu companheiro John Cage, compositor revolucionário, foi responsável pelo mais importante divórcio das artes no século 20: a separação da dança e da música. O ponto central, o “motor”, da sua criatividade é o corpo e o movimento “puro”. Sem hierarquias.

É justamente a partir da primeira produção que realizei junto a essas crianças, denominada de “Hiper-atividade-em-movimento”¹ , que pretendo conduzir esse compartilhamento. Começo pensando num fazer artesanal em arte, como mote fundamental para pensar em resistência ou transformação do que está sendo imposto pela indústria cultural. Isso implica também em escolher materiais acessíveis ao público com o qual desenvolvo este trabalho.


Encontro dos pés. Videodança Hiper-atividade-em-movimento

Era comum ouvir das crianças durante as oficinas a pergunta: “sôra, que dança é essa?”. Tentei responder com o próprio fazer da videodança. À essas crianças geralmente, é imposta uma aura de agressividade, de tendências destrutivas, de resistência a tudo o que possa ser proposto. É comum ouvir comentários preconceituosos sobre elas. Muitas pessoas, ao observá-las à primeira vista, as rotulam de ‘hiper-ativas” entre outros “diagnósticos” dados à revelia. A carência afetiva, a tristeza, a fome, a dor, são pétalas cotidianas em sua alma-pele. Foi bem por este motivo, no clima da brincadeira, que o título da videodança analisada foi definido como “Hiper-atividade-em-movimento”, pois essas crianças em nada diferem de outras criadas em diferentes classe sociais, no que se refere principalmente a potencialidades para criar. Essa é uma geração irrequieta, perspicaz, independente de onde esteja plantada.

A tarefa ou dispositivo básico proposto para essa videodança surgiram da pergunta de como se pode deslocar-se pelo espaço cênico, delimitado por um linóleo branco. Elas se colocaram diante de um abismo para se lançarem em coisas que consideram novas, para elas naquele momento. Seus corações dispararam, diante de escolhas e decisões urgentes para cumprir essa tarefa.
As crianças estavam alegres, entusiasmadas, ao invés de zangadas, como eu quase sempre as encontrava. Descobriram outras formas e outros sentidos para realizar movimentos banais para sua idade, e explodiram nas suas vontades, mesmo cumprindo tarefas.

Eles criaram coletivamente porque havia uma espécie de relação sedutora com a câmera, eles se sentiam à vontade para fazer coisas, queriam mostrar o que sabiam fazer. Aceitaram regras de convívio com mais facilidade do que em outras situações, como respeitar a vez do outro.

Já mencionei que havia optado por um modo experimental e artesanal de captação e de edição das imagens, além da aproximação com linguagens de jogos e outras produções digitais a que essas crianças já estão ambientadas. Por este motivo, a edição de “Hiper-atividade-em-movimento” foi realizada em um programa básico e gratuito, mas que oferece funções de efeito como rotacionar, transições, mixar e colocar legendas e textos, entre outros itens.

O que é focado e o que não é focado.

Abrir espaços para que a imaginação complete o que o olho vê. Robert Dunn²  defendia em seus workshops de composição coreográfica a criação de aprendizados nos quais um “espaço de nada” – um vazio – fosse possível, onde as coisas pudessem aparecer e crescer da maneira que fossem, o “vazio positivado” (MARQUES, 2003, p. 178). Durante as oficinas e na captação das imagens, eu também tinha em mente essa possibilidade, estendida para a fase de edição, etapa na qual se revela a imagem como corpo, na qual muitas vezes a ausência do corpo humano deixa espaços para que linhas e cores também dancem.
Para que determinadas coisas são ou não focadas, qual a importância implicada nestas decisões?

Vídeo em Latim significa “eu vejo”. Eu vejo dança. Como eu vejo dança? A questão maior talvez esteja além do que “pré” ocupações com classificações ou mesmo na escolha de condições técnicas: o que se pode fazer a partir do que essa condição tecnológica oferece?

Mesmo quando manipulada, uma imagem possui autonomia a partir das relações estabelecidas entre os seus elementos constitutivos tais como linhas, pontos, cores, planos, formas, cor, luz, dimensão, volume e textura (OLIVEIRA, 2006). Estes aspectos e também o fato de o vídeo retalhar e pulverizar a imagem em centenas de milhares de retículas nos dispensa da mimética imposta pelo cinema, abrindo espaços para que os espectadores também criem ao olhar a imagem.
Conforme Arlindo Machado (1990, p 41), a imagem do vídeo apresenta “uma outra topografia que, a olho nu, aparece como uma textura pictórica diferente, estilhaçada e multipontuada”, confere tatilidade à imagem, como se olho fosse capaz de “apalpar” a sua granulosidade e sentir a sua constituição” (MACHADO, 1990, p. 44, apud PIGNATARI, 1984:16). 

A partir de tarefas, as crianças se revelam. A partir de como é feito o enquadramento e efeitos de manipulação de imagens, como cores, velocidade, a videodança revela fatos que dificilmente serão percebidos no cotidiano, tanto pelas crianças, como pelos adultos que os circundam. São experiências estéticas que fazem com que o espectador passe a aceitar os “tempos mortos”, nos quais “nada acontece”, diferente das narrativas fílmicas ou novelísticas, amarradas segundo nexos de continuidade (MACHADO, 1990, p. 76). Certos trabalhos de videoarte, seguindo os pensamentos do autor,

exigem uma atitude dispersiva e autônoma por parte do público. Não é necessário vê-los por inteiro, uma vez que sua estrutura circular e reiterativa não está determinada pelo recorte da duração. Seu timing é solto e absoluto, como o da nossa própria vida corrente.

As escolhas coreográficas que surgem nessa videodança não estão atreladas à necessidade de que os corpos representem algo. Eles simplesmente são. Por isso videodança pode ser feita com pipocas, formigas, linhas. O pensamento coreográfico continua em tudo que se move, a imagem pode ser o corpo que dança. Mas para essas crianças, ver os seus próprios corpos dançando confere um presente da ordem de afirmação de identidade. Nós brincamos com as dimensões, com os eixos. Rolamos na vertical ou na horizontal? Que isso importa, a não ser o olhar que lançamos para quem nos vê? Tal evento é difícil de ser assimilado por uma civilização racionalista, na qual a imagem desfragmentada está ligada à decadência dos valores.

Mas a desfragmentação liberta de modelos prontos, alcança um espaço para ser preenchido, não é ditadora como uma grande tela de cinema com seus fotogramas previsíveis.

Fayga Ostrower (1988) afirmou que não existe um momento de compreensão que não seja ao mesmo tempo criação. É de seu pensar também que emerge o fato de estarmos na presença de uma metalinguagem, que serve de referencial a todos os modos de comunicação humana, a linguagem das formas de espaço, partindo do preenchimento de delimitações de superfícies. Wosniak (2006) aponta que o mundo das interfaces digitais é o lugar privilegiado das artes e em específico da dança, pois se constitui num ambiente de pesquisa por excelência. O corpo que dança, ao poder se olhar, pode detectar outros modos de corporificar essa dança. Pode também perceber que essa dança acontece em relação a outros componentes do espaço. Pode também simular outras formas de movimento, pensar e repensar nas suas limitações e no possível de se lançar no espaço. Pode dançar não apenas com o seu corpo físico, mas com toda a fisicalidade que o envolve.

Assistindo a “Hiper-atividade-em-movimento”, podemos pensar poeticamente que o que sangra no espaço é dança, e o que sangra não é só a dança. O que é focado e o que não é focado possuem igual valor. O espaço vazio pode não estar vazio. Quais contrastes no horizonte me interessam pontuar: caminhar ou cambalhotar? Vou dançar com a trilha sonora escolhida, a presença ou a ausência do som, o tensionamento das batidas, o desconfortável.

Todos esses afetos começam agora a fazer parte de outras etapas do projeto, no qual as crianças se assumem também como coreógrafas de formas, mãos, pés, movimentos e múltiplos acontecimentos, ao captarem as imagens e irem para a ilha de edição comigo. Mas esse é apenas um outro capítulo dessa história.



Cambalhotar. Videodança Hiper-atividade-em-movimento.




¹  Videodança disponível em http://br.youtube.com/watch?v=DlGlTnwikoA

²  Músico que acompanhava John Cage no estúdio de Merce Cunningham. Seus workshops eram formatados como estudos de caso, com tarefas que poderiam ser expandidas pelos participantes.


REFERÊNCIAS:


MACHADO, Arlindo. A arte do vídeo. 2a Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.

MARQUES, Isabel A. Dançando na escola. São Paulo: Cortez, 2003.

OLIVEIRA, Sandra Ramalho e. Imagem também se lê. São Paulo: Rosari, 2006.

OSTROWER. Fayga. A construção do olhar. In: O olhar. Organização de Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SANTANA, Ivani. Corpo aberto: Cunningham, dança e novas tecnologias. São Paulo: Educ, 2002.

WOSNIAK, Cristiane do Rocio. Dança, cine-dança, vídeo-dança, ciber-dança: tecnologia e comunicação. Dissertação de mestrado do Curso de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, 2006.





Videodança Hiperatividade em movimento